A (des)ordem do discurso da Loucura e a ruína da(s) Clínica(s)

Esquizografias
7 min readJul 23, 2020

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Eis que, por ousadia ou desventura, me lanço discutir a complexa relação entre a (des)ordem do discurso da loucura (em sua polissemia) e as clínicas, mais propriamente as clínicas psi. Em Diferença e Repetição, Deleuze (2018)disse:

“Ao escrevermos, como evitar que escrevamos sobre aquilo que não sabemos ou que sabemos mal?
É necessariamente neste ponto que imaginamos ter algo a dizer.
Só escrevemos na extremidade de nosso próprio saber, nesta ponta extrema que separa nosso saber e nossa ignorância e que transforma um no outro.
É só deste modo que somos determinados a escrever”

Nos entremeios entre o saber e o não-saber, proponho uma escrita sem qualquer compromisso de situar a origem deste encontro ruidoso e cheio de lacunas, tentarei partir do meio com suas rupturas, desvios, fissuras, descaminhos próprios do discurso e da loucura, mas nem tanto da clínica (pelo menos em sua concepção clássica, tradicional, hegemônica que tenho chamado de Gramática Vida Mental pois sobrevive como os copia-dores que denunciou Estamira que vivem de apontar os erros de uma “norma-culta” da mente.
Torcendo o questionamento Foucaulteano em a Ordem do Discurso, pergunto: O que há, enfim, de tão perigoso no discurso da loucura se propagar indefinidamente? Onde está o perigo?

O discurso do louco já circulou labirinticamente diferentes espaços e sentidos a depender do contexto social e da formação histórica: genialidade, comunicação com os deuses ou o infortúnio dos infernos, até a sua noção de des-razão (arrebatada pela boutade cartesiana e armadilhada numa condição de não humanidade onde se razão justifica a existência, a desrazão justifica o que?) até desembocar na invenção do conceito de Doença Mental como ferramenta da Psiquiatria em sua insistente tentativa de se firmar como ciência (como subterfúgio para driblar a Declaração Universal dos Direitos Humanos).
Tais discursos produziram subjetividades, práticas, técnicas diferentes para a loucura desde os pátios do reino como bobos da corte, a decifração dos oráculos, os exorcismos, chegando ao grande internamento com a sujeição em institucionalização macropolítica nos manicômios e micropolítica nos diagnósticos, dos quais a clínica (psiquiátrica, psicológica e psicanalítica) esteve atrelada de maneiras plurais, desde a sua a fundamentação à sua crítica.
Tomada como desprovida de verdade e utilizada como argumento para interrupção de diálogo (etimologicamente dia -através de, por meio de- e logos — saber, sentido), valendo citar os exemplos da vida cotidiana em que dizer que um discurso é loucura, retira deste qualquer validade.

Bebendo na fonte do A Ordem do Discurso (1970), cabe citar os mecanismos de exclusão que me fazem lembrar provocação de Jorge Louko (com K, como autodenomina um homem em situação de rua de Fortaleza, ou melhor nômade pois diz que mora no mundo, que tive o prazer de conhecer) que, de maneira eloquente e lapidar, denuncia os saberes Psi enunciando-os como saberes Psiu: Psiucologia, Psiuquiatria, Psiucanálise como forma de apontar suas estratégias de silenciamento. Mas como se produzem os processos de exclusão e silenciamento do perigoso discurso da loucura na clínica?

Foucault cita em A ordem do discurso o mecanismo da Interdição que controla o que pode e o que não pode ser dito. Apesar de se colocarem como profissões da escuta, a clínica opera em sua “escuta” recortes do que importa para a análise e o que não merece a atenção, sobretudo por um modo de operação ancorado quase obsessivamente em seus operadores teórico-metodológicos, onde os signos são vistos como peças de quebra-cabeça a serem encaixados em aprioris

E eis que a desviante ordem do discurso do louco rompe com a ordenação de um modus operandi clínico (como disseram Deleuze e Guattari em O Anti-Édipo de 2010 o louco se levanta do divã e se põe a ser peripatetizar). Seus desvios incomodam por não obedecer (obedescer) aos estatutos de uma moral ainda muito cristã e cartesiana (no terceiro volume do Mil Platôs Deleuze e Guattari -1996 colocam em condição de semelhança Padres e Analistas, sobretudo pela relação entre desejo e falta, desejo e moral).
Falas como as trazidas pelo Freud (1911) do Presidente Schreber ( que anunciava com os raios do Sol lhe adentrando o ânus, do Artaud (1947) em sua guerra aos órgãos e de Estamira (2006) na sua denúncia ao Deus farsário, assaltante, arrombador de casa são incômodas e logo as tentativas de silenciamento químico ou dialógico se põem. Psiucologia, Psiuquiatria, Psiucanálise

No livro Poder Psiquiátrico, Foucault (1973–1974) afirma que uma das estratégias da Psiquiatria para o dito louco se livrar de sua loucura é “escondê-la, não dizê-la, afastá-lo do seu espírito, pensar em outra coisa: princípio da não-associação”. Eis que se pode lembrar das piegas frases de autoajuda (que as clínicas reproduzem ou vice-versa): “Não pense nisso, pense positivo e tudo vai melhorar. Isso é loucura da sua cabeça.”
Neste cenário, o desejo do louco é destituído no seu discurso (e seu discurso é destituído de seu desejo), sendo este pertencente a intrusão de pensamento, ao desequilíbrio químico e cabendo o manejo, canalização e organização a quem supõe ter direito privilegiado de fala sobre a loucura: as clínicas Psi.

Outra forma de exclusão da qual a clínica dispara enquanto dispositivo com suas linhas de dizibilidade, visibilidade e subjetivação é a partilha, separação ou rejeição que se concretiza na dicotomia entre razão e loucura, conferindo lugares de dispersão diferentes. Tal fator pode ser ilustrado pelo fenômeno do delírio que Segundo Karl Jaspers são juízos patologicamente falsos, lançando ao discurso delirante um lugar de não-verdade ou seja não-validade em uma busca pela verdade que Foucault qualificou tão bem no Microfísica do Poder como uma busca adolescente pela verdade em contraposição aos delírios e alucinações como o erro, o falso, o mero imaginário (sendo este sinônimo do inexistente) o que Estamira rebate de maneira quase poética: “Tudo que é imaginário tem, existe, é”.
As operações clínicas para o discurso delirante vão desde o aumento das doses dos antipsicóticos aos risíveis dados de realidade, que tentam ordenar o discurso da loucura a uma suposta realidade normal, como se o confronto com uma “realidade normal” fosse em si salvar o outro da realidade do delírio.
Eis que oposição entre verdadeiro e falso cumpre uma ordenação circunscrita na realidade da maioria (a luz do conceito de maioria-minoria enquanto relações de hegemonia e não em aspectos quantitativos). Tal oposição opera à luz dos conceito de normatividade e normalidade em Canguilhem (que demarca os elementos sociais e de poder que constituem a definição de normalidade) e não respeita a experiência de percepção do outro, deixando de entender que se tem algo que o delírio é para o louco é real: “Tudo que é imaginário, tem, existe, é.

Eis que se conflita com a clássica frase de Anna O. (uma das pacientes clássicas da Psicanálise em seus status nascendi) de uma cura pela fala, posto que a ordem própria do discurso da loucura, sua organização, suas regras e elementos de constituição são rebatidos a partir de parâmetros epistêmicos, técnicos e sobretudo morais. Seja pela crença de que o discurso do louco é em si o apontamento de uma desrazão a ser corrigida, seja pelos perigos de sua circulação no campo social…
Etimologicamente, a clínica deriva de cliné que diz do ato do médico enclinar-se sobre o leito para ofertar a cura ao paciente. A invenção da Doença Mental pela Psiquiatria trouxe em seu bojo uma suposição de cura (que no sentido tradicional da medicina hipocrática diria de um silêncio dos órgãos, uma ausência de sintoma). Partindo desta perspectiva, diversas foram as tentativas de cura: afogamentos, choques, lobotomia, isolamento da sociedade, prisões, agressões, cadeiras giratórias, confissão, hipnose, livre associação.
Funcionando nos interstícios do saber e do poder, a clínica (sobretudo a psiquiátrica) funciona em disputa com o saber do louco (entendido como não-saber ou falso saber) e o poder da loucura (este entendido pelo signo da megalomania, do delírio de grandeza), em uma dupla captura. Esta disputa precisa se afirmar pela negação do louco enquanto sujeito (centrando uma existência meramente pática) para que este possa se prostar diante do lugar de saber-poder do médico. Caso de Dupré citado na aula de 1973 com seu delírio de grandeza foi atravessado por um tentativa de rebaixamento pelo psiquiatra Leuret (um dos exponenciais nomes do Tratamento Moral da época), que se utilizou da adição de medicações que produziam dores estomacais para confirmar que este não era superior a ninguém.
Como disse Deleuze em seu livro sobre Nietzsche “os fracos (…) não triunfam por adição de suas forças, mas por subtração da força do outro: separam o forte daquilo que ele pode.” A clínica tenta subtrair a força do louco, separando-o do que pode pela negação do seu saber, do seu poder, por medo da sua imprevisibilidade, por medo de que o discurso do louco ponha a clínica em ruína.
Enquanto as clínicas Psiu desejam silenciar o discurso lido como mero sintoma incômodo, a loucura reinventa seu grito, ramifica-se de maneira labiríntica, fugindo das tentativas do discurso de ordem da clínica (repleta de tecnicismo, protocolos, estruturações).
Eis que volto ao início retomando a torção do questionamento do Foucault “O que há, enfim, de tão perigoso no discurso da loucura propagar indefinidamente? Onde está o perigo?”.
Longe de ser transparente, o discurso da loucura tem cores, texturas, armadilhas que assustam aqueles acostumados a se proteger por trás de mecanismos do controle, disciplina e docilização. O discurso da loucura traz consigo regiões perigosas em sua capacidade de denúncia do modo mais Kanteano possível a ilusão de uma razão pura, pois sabemos como nos disse que de perto ninguém é normal.

O discurso do louco é perigoso por revelar verdades como disse Estamira sobre sua missão: “A minha missão, além de eu ser Estamira, é revelar a verdade, somente a verdade. Seja mentira, seja capturar a mentira e tacar na cara, ou então ensinar a mostrar o que eles não sabem, os inocentes… Não tem mais inocente, não tem. Tem esperto ao contrário”

Em meio a estes descompassos e tentativas de silenciamento que põem a clínica esperta ao contrário em condição de ruína em seu estatuto e seus objetivos, cabe finalizar citando a clássica frase do Foucault em Doença Mental e Psicologia: “a psicologia nunca poderá dizer a verdade sobre a loucura, pois é esta que detém a verdade sobre a psicologia!”

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Coletivo de escrita formado por um só corpo e seus outramentos - por Deivison Miranda Experimentando a multiplicação de novos possíveis!

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